Os trezentos (publicado no Jornal do Tocantins de 24.06.2010)

Os trezentos

Gilson Pôrto Jr. é pedagogo, jornalista, mestre em Educação e doutorando em Comunicação. Coordena o Grupo Educação, Cultura e Transversalidade (Unitins). E-mail: gipounitins@gmail.com

Uma das grandes batalhas do mundo antigo imortalizou a figura dos 300 espartanos, liderados pelo Rei Leônidas. Esses enfretaram o exército persa de Xerxes de cerca de 1 milhão de soldados em 480 a. C. Na história, esse ato ficou conhecido como a Batalha das Termópilas, onde esses demonstraram o despreendimento face à morte pela defesa dos valores fundamentais - liberdade, família, honra. Independente do grau de veracidade do relato historiográfico, a representação do ato é emblemática e retrata o potencial que uma narratividade tem em produzir ações e a eclosão de sentimentos nobres.

Passados quase 2500 anos desse evento, outros 300 causam impressão. Não estão localizados na Grécia, mas no Brasil. Esses têm sua cidadania esquecida e até negada. Esses 300 estavam na delegacia de Vila Velha (ES). Eram 300 em uma cela que cabiam 36 pessoas. Esses 300 de Vila Velha são seres humanos, apesar de terem sua humanidade negada, seus valores desprezados e sua decência esmagada. Não faço aqui apologia ao preso. Quem se encontra privado de liberdade o fez por merecer, ou, como eles mesmos o dizem em tom de sarcasmo: “somos todos inocentes aqui moço... quase...”. Quem “perdeu” um amigo ou parente em um crime sabe a dor, o sofrimento e a mágoa presente. Ela é diferenciada e potencializada por cada indivíduo maculado pelo crime. O sofrimento parece ser amenizado quando o culpado está atrás das grades. Quanto maior seu sofrimento, maior a sensação de que, provisoriamente, foi feito a “justiça”. Esse é um sentimento verdadeiro, mas não a “verdade”. Henri Marrou, historiador moderno, dirá que uma narratividade, trará um olhar, um ponto de vista provisório e, nesse sentido, retrata o verdadeiro. O “real factual”, traduzido por muitos como a verdade, absoluto e final, esse seria impossível de ser alcançado, já que temos pontos de vista, olhares e desvios na interpretação do acontecido.

Apesar do sentimento de perda ser avassalador nas vítimas, não se pode esquecer que essa situação é uma via de mão dupla. Do outro lado, encontram-se outras figuras que, igualmente sofrem: são país, mães, filhos(as) e esposas(os). São pais e mães que sonhavam com filhos que os tirassem da situação de miséria em que se encontravam; são esposas que sonharam com um futuro, como o criar de filhos, com uma vida digna; são filhos que crescerão sem país ou mães e, ainda por cima, com o estigma, de serem “filhos do criminoso”.

A maioria desses (73,83% dos privados de liberdade), segundo os dados do INFOPEN/2009, são jovens entre 18 e 34 anos, que nem começaram a sonhar com a vida e, que já querem acordar do pesadelo em que se encontram. São 93,51% do sexo masculino, 56,43% de pretos e pardos e, 65,71% que nem mesmo completaram o ensino fundamental.

São vidas desperdiçadas, condenadas ao esquecimento e a solidão. Nutrem, dia a dia, mês a mês, ano a ano, o momento e a expectativa da liberdade. Alguns, não para retomar suas vidas interrompidas, mas para se vingar de uma sociedade que os excluiu desde o início de sua existência, que o excluiu da educação, do trabalho, do afeto e do amor familiar. Mais ainda: que os fizeram “animais”, que diariamente tem de se tornar mais ainda essa “fera” corrompida e incontrolável, para não ter seu corpo maculado na escuridão da noite e da superlotação das celas.

É, esses 300 de Vila Velha, não serão lembrados. Queremos esquecê-los, não são heróis, mas ainda são seres humanos. Seus rostos permanecerão na escuridão da “longa noite” social que viverão pelo resto de suas vidas. São como Jean Valjean, de “Os miseráveis” de Victor Hugo, que depois de cumprir 19 de anos de prisão (5 por roubar um pão e 14 por tentar fugir), recebeu seu documento de identidade que dizia se tratar de um homem perigoso. Marcado, estigmatizado, não havia lugar para esse homem no mundo.

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